Poemas noturnos

Numas ruas

Numa rua em que caminho tem mil fugas

E dessas mil eu quero a que mata

A que não tem saída, a amurada

A que tem um assovio na última passada para a luz

Tem nessa rua um punhal que corta certo

Mas de punhaladas já carrego as minhas e nenhuma tem sangue

Gota alguma de sangue, nessa rua sou o fantasma das memórias

Nessa outra há passagem para o cais

E o cais está vazio, o cais sempre está vazio nessa rua!

Noutra rua em que passo é tão fria que o blues resseca minha carne

A pouca carne que habita em meus ossos

Por ela caminho tristezas e deixo cair de minhas mãos a serenata da loucura

Vou pelos becos como um louco que vai e não teme!

E saio em outra rua carregada de brumas e toneladas de estrelas escondidas abraçam

minha dor

Sigo como aqueles a andar sem rumo

Procuro apenas por indestinos

Agrada-me a exuberância de um lugar perdido

Vou reto ou por redemoinhos

Não interessa-me quem me olha nessas ruas

Tenho multidões carregadas na memória e sozinho as carrego

Resta alguma beleza a ser lembrada nessa rua que termina em avenida larga

E por larga avenida vou até as estradas do sem fim

É nessas estradas que componho os caminhos da minha fé

Que vou livre pássaro voando rebeldes ventanias nascidas do efêmero

É nas estradas que procuro as desnecessariedades

E por outra rua que não passei devo chegar ao meu fim porque sempre vou nessas ruas.

Encontro com lobos

Vieram do fundo da noite com a fúria nos olhos

A fúria dos lobos trazem-os ao mundo e o fundo da noite

é faro perdido com ganas de fome, a fome dos lobos

A neve marcava os passos, eram pegadas de lobos

Ouvia-se o uivo da floresta dentro do uivo dos lobos

Nevasca cortante e fria eram as unhas dos lobos

Queimava sangue de raiva, eram os olhos dos lobos

Rugiam no inflame do gelo, eram os dentes dos lobos

Nesse rosnar matilhado havia a morte dos lobos

Molhado o pêlo de neve, era o sangue dos lobos

Os lobos acuaram sua fome, comeram a carne da sua vingança

A carcaça dentro da toca é também os ossos de um lobo

Morrer à míngua na toca é o único medo dos lobos

Sem forças para uivo, os lobos na dor da noite ganem

Há um uivo mordendo a alma das feras e muita fome nos lobos.

Um não acabar de agosto

Que grande sofrimento esse agosto!

Que desencontros nesse agosto!

Tudo em mim é agosto!

O agosto ficou nas roupas que deixei perdidas nos lugares que visitei em agosto

O agosto veio comigo e entrou setembro sem querer saber de setembro

Minhas coisas são datadas de agosto.

Meus poemas, meus encontros, meus mortos muitos deles são de agosto

Os objetos que lentamente retiro da mochila da grande viajem têm cheiro de agosto

Me esqueci dos outros meses, só lembro do agosto, desse maldito tempo que cravou em

mim seus trigais enfermos

Das palavras ditas ao telefonema inesquecível de agosto

Minhas lembranças são agosto e vivo esse gelado tempo em meus dias de agosto

Que mudem o calendário, não aguento mais agosto.

A dança das samambaias

PARA RODRIGO, NA RUA DO DELÍRIO.

O meu peito esperava por isso, princesa.

Baionetas dilaceram-me.

Sou tédio, sou dor!

Vezes há, faço perfeito o que não me ensinaram.

Dedico raiva e suor por tua luz.

Danço na rota mais rápida.

Componho vozes impulsivas no alto de torres.

Ó mágoa endêmica de mim!

Deixe cair o horizonte sobre mil espelhos.

Abandone tudo para o mar de teus desejos.

Sinta o ar desabado no limbo.

Agradece o coração arrancado do reles destino.

Morte, continuada morte.

Eterno encalço da morte.

Confundo minha procura.

Neutralizo ideais.

Corro no medo de Andrade.

Avisto as ruas para cansar-me.

Busco a menina louca.

Louca induzida a um perigo de sangue e ruínas.

Bela e não entende a beleza.

Sinuosa armadilha noturna.

Perigo das ruas!

Quero ver a vida na menina inesperada.

Sou voo baixo sobre o seu palácio.

Crio vésperas.

Atormento o grito demente.

Afugento taças na Gália.

Testemunho universos.

Descubro sedas floridas sob jaspe.

Ajusto delírio em minha alma.

Guardo a roupa do trovão.

Notas para flauta

DE TARDE UM VELHO TOCARÁ SUA FLAUTA PARA INVERTER OS OCASOS.

Manoel de Barros

PARA FAUSTO PIRES DE SOUZA.

A última página virou na expiração de um poema.

No grito louco da solidão

Na despedida do olhar e palavras tristes

No corte seco da lágrima dormente

Homens morrem como livros fechados esquecidos no pó.

Continuam morrendo para ver o sol

Para ver os olhos da vida beijando a manhã.

Para ter esperança.

Se dispersa no ar um último som.

Um sonho que não quer viver.

Um eco no final da canção.

Do verbo mentir muito imperfeito

Falavam de águias, abutres e corvos, gavião carcará

Falavam de cobras, peçonha e mordidas no calcanhar

De outros falavam e coisas imundas mais sujas não há

Assim eram as línguas que iam criando a fala má

Iam dizendo e iam inventando montoeiras a pá

Cavavam mais fundo na rasa maneira de prejudicar

Aumentavam o buraco que ia se abrindo pra tentar derrubar

O buraco cavado foi indo e indo à caminho do mar

Cavavam, cavavam e de tanto cavar esqueceram do lar

Saíram às ruas falando, gritando e apontando olha lá

E ondas certeiras romperam as areias das línguas mais más

O buraco que tinha tentado armadilha formar

Encheu-se de água, de água de mar

E veio subindo na terra arenosa buscando a palavra que viria à boiar

Muitos nadavam, remavam, fugiam e iam embora da praia e do mar

Davam-se conta que a vida privada é melhor não espiar

Alguns se afogavam e água bebiam por ter boca aberta de tanto falar

Outros calavam e quietos seguiam por não ter mais vergonha e assunto inventar.

Poema da espera

PARA O AMIGO PEDRO.

Não veio do fundo da noite

Nem do fundo da taça de vinho

Não veio do escuro

Nem das árvores enluadas de negro

Não veio do sol desenhado de fogo

Nem da chuva caída com raios na voz da noturna queimança de medos

Não veio da pedra silenciada em milênios

Nem do grito veio

Não veio da vida nem da morte

Nem do fumo ansioso em serenos

Não veio do trigo plantado na relva da terra vermelha

Nem do solo amarelo da lua

Nem do fósforo veio

Nem da fábrica de doidas palavras sem rima acabada

Não veio da fúria, não veio.

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5 respostas para Poemas noturnos

  1. casadazuza disse:

    Amei os poemas. Me deixaram em estado de nostalgia, nostalgia Boa. PARABÉNS!

  2. uaíma disse:

    […]vou reto ou por redemoinhos[…] – este verso teu me lembrou a epígrafe que Guimarães Rosa escreveu para o livro Grande Sertão: Veredas: “O Diabo na rua, no meio do redemoinho.”

    Um abraço. Grato pelas visitas.
    Darlan M Cunha

    • Ah, poemas nascidos em “noite do inferno”, tomando talagadas de venenos em bares que já fecharam e cujos nomes poucos lembram-se. De todo modo, fez lembrar-me de Rimbaud.
      Gratidão pela visita e palavras.
      Abraço Darlan!

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